Texto do Pe. Darlan Aparecido de Fátima Lima
A santidade da Igreja é um dom de Deus a todos os cristãos. Por isso, o Catecismo como a Lumem Gentium faz preceder o texto sobre a santidade da Igreja antes de falar da vida religiosa. Esta não deve ser entendida simplesmente com um dom aos consagrados, a santidade é para todo cristão. Cada ser humano é chamado a uma comunhão de vida com o Criador.
Todos sabemos como o pecado marcou, e marca, profundamente o coração do ser humano. Se nascemos por um ato de amor de Deus, fruto de sua bondade e gratuidade, ao mesmo tempo, neste mesmo amor, se insere a possibilidade e capacidade de pecar. Pois, onde há amor há liberdade, onde há liberdade há possibilidade de um ato bom ou ruim. Esta é a história da humanidade no seu desenrolar-se.
Deus, em seu amor infinito e misericórdia, chama-nos a todo instante. Assim surgem as diferentes formas de vocação: matrimonial, sacerdotal, religiosa. Nestas linhas nos deteremos sobre a vida religiosa consagrada. Assim definida pelo Catecismo da Igreja Católica:
“Tal como uma árvore se ramifica maravilhosa e variadamente no campo do Senhor, a partir de uma semente lançada por Deus, assim surgiram diversas formas de vida solitária ou comum, e várias famílias religiosas que vêm aumentar a riqueza espiritual, tanto em proveito dos seus próprios membros como no de todo o Corpo de Cristo”.
(n. 471)
“Como uma árvore no campo do Senhor”. Que imagem bonita o Catecismo encontrou para exemplificar a vida consagrada. Uma árvore é formada por um único tronco, mas com ramos diversos, cada um a seu modo, exprime e faz a beleza da árvore. É assim a vida consagrada, cada uma possui o seu carisma próprio a partir da vontade do seu fundador, com uma estrutura que possibilite o seu apostolado e na vivência dos conselhos evangélicos (pobreza, obediência e castidade).
O religioso sente em seu coração o chamado de Deus a um seguimento total num carisma específico. Para a vivência deste carisma próprio o Senhor o concede uma graça para cumprir e exercitar a própria vocação. Isto buscado na vida de oração que o torna íntimo de Deus e o faz compreender e viver seu carisma.
Um amor que convida: “se quiser…” porque a via do amor não pode ser uma imposição. Assim, ao longo da história da Igreja muitos homens e mulheres compreenderam este chamado. Seja à vida solitária ou em comunidade, de acordo com o chamado e o carisma inspirado pelo Espírito Santo. Entenderam que era preciso entregar-se de forma mais concreta e específica a esse amor, bem como manifestá-lo de uma forma particular. Na doação total de si.
Os grandes movimentos da vida religiosa marcaram a história da Igreja desde a antiguidade até os dias atuais. Todos eles nascem deste convite do Evangelho, pessoas que sentem em seu coração o chamado do Senhor para segui-Lo e viver o Evangelho em uma doação total.
Já os Atos dos Apóstolos 21,8-9 nos dão o testemunho de virgens que se consagram para o serviço do Senhor. Os escritos apócrifos também apresentam pessoas, místicos, que desejam e vivem o Evangelho de forma diferente das famílias, chamadas ao matrimônio, ou dos sacerdotes. Temos notícias destas pessoas em Edessa, na Pérsia e outros lugares.
O cristianismo, no terceiro século, já havia se difundido por todo o Império Romano. Nas várias regiões do império era possível encontrar pessoas que viviam juntas ou solitárias nesta vida dedicada ao serviço e construção do próprio ser no Evangelho. Encontramos nas diferentes Igrejas grupos de mulheres que se dedicam a uma vida em comunidade. Estas agremiações de pessoas que vivem juntas por causa do Evangelho são os grupos aos quais chamamos hoje de monaquismo.
No ano 271, temos o testemunho de Santo Antão (Antônio) que devota sua vida à oração solitária no deserto. A sua vida foi documentada por Santo Atanásio (296-373). Mas temos testemunho de outras fontes que nos narram a existência, anterior a ele, de homens cristãos que viviam e se dedicavam à vida de oração no deserto. Neste mesmo período temos o testemunho de Pacômio, dedicado a vida cenobítica, juntamente com o testemunho de vários outros: Paulo Tebas, Amonio e Macário, para citar alguns.
Um grande nome na sistematização da vida religiosa foi Basílio (329-379). Ele organizou na Capadócia uma forma de vida comum a partir de sua própria experiência e da de outros mosteiros que conheceu ao longo de suas viagens. Assim, uma vez bispo, ele desejou que estes monges se dedicassem ao cuidado dos enfermos, dos pobres, dos peregrinos, à vida de oração e contemplação. Gregório de Nissa (335-394) foi o grande difusor da espiritualidade de Basílio e possibilitou que esta espiritualidade chegasse ao Ocidente, através de nomes como: Evágrio Pôntico, Cassiano, João Clímaco, Pseudo-Dionísio, Mássimo Confessor, entre outros. Mas a vida religiosa no ocidente foi marcada por São Bento (480-547), que escreveu uma regra para orientar a vida de seus monges. Esta servirá, a partir de então, para vários movimentos de reforma ao longo da história.
Na história é comum termos tempos de bonança e de tempestades. A partir do século V, com o processo de expansão dos povos bárbaros, política imperial enfraquecida, costumes em declínio… ressonâncias foram sentidas na vida religiosa. E não poderia ser diferente, visto que ela está inserida no mundo.
Para os clérigos encontramos na pessoa de São Crodegango (712-766) um grande incentivador na reforma do estilo de vida. Redigiu uma regra incentivando a vida comum também para eles – inspirando-se naquela de São Bento. Indicava a vida comum, cuidar da vida espiritual e possibilitava conservar os bens próprios, ainda não era necessário fazer o voto de pobreza. Foi Carlos Magno quem advertiu a necessidade de sistematizar a vida religiosa, tanto dos clérigos como dos monges, devido à confusão que se criou pelos clérigos viverem a vida comum (a partir da regra de São Crodegango) como os monges, propriamente ditos. Determinou que os monges deveriam viver dentro do mosteiro, na clausura, seguindo a regra de São Bento, e os demais a regra de São Crodegango.
Após esta reforma de Carlos Magno, os religiosos passaram a ser identificados principalmente com os monges, que viviam em clausura. A fisionomia da situação começou a mudar a partir da experiência de um jovem italiano, Francisco de Assis (1182-1226). Ele teve uma experiência mística forte, sentindo o chamado a viver o evangelho de forma radical na pobreza e serviço aos irmãos, vivendo de maneira simples e sem seguir nenhuma regra que não fosse o Evangelho. Pode-se entender o espírito que o movia a partir da Oração de São Francisco, na qual vemos que simplesmente deseja ser um instrumento para ação da graça de Deus. Não desejava institucionalizar o seu modo de vida. O exemplo de Francisco atraiu a outros jovens, a radicalidade e profunda espiritualidade foi contagiante e fez com que muitos desejassem seguir o seu caminho. Mesmo contra a sua vontade, Francisco teve que compilar uma regra para disciplinar a vida destes homens que se colocaram no seguimento de Cristo inspirando-se no seu carisma. Assim nasceu a Ordem dos Frades Menores.
Neste mesmo momento, outro jovem, Domingos Gusmão (170-1221), sentiu o chamado a fundar uma ordem dedicada à pregação da palavra de Deus. Deu juntamente com Francisco um impulso às chamadas ordens mendicantes. Estas ordens se dedicam à evangelização ao cuidado dos pobres, e são assim chamadas devido à vida de pobreza em que vivem e por sobreviver de doações, da generosidade dos irmãos. Diferenciam-se dos monges por viverem não presos na clausura, mas no apostolado itinerante e em contato direto com as pessoas das cidades e lugarejos.
Com o passar do tempo o ardor evangelizador e de vivência do evangelho enfraqueceu no coração dos religiosos. Será nos séculos XIV e XV que veremos um novo impulso de reforma na vida religiosa, pois percebem que a vida cotidiana está ficando longe do ideal desejado por seus fundadores. A esse movimento de retorno às fontes da vida religiosa chamamos de movimento observante que perpassou por diversas ordens religiosas: franciscanos, carmelitas, dominicanos, etc. Isto incentivou o surgimento de novas ordens religiosas dentro do espírito do tempo.
Uma reforma na vida da Igreja era reclamada e pedida por vários setores. O papado não assumindo esta tarefa levou Lutero a fazer a sua reforma pessoal, como outros no seu tempo. Mas também tantos permaneceram dentro da Igreja e fundaram novas ordens religiosas. Uma das grandes fundações deste período é a Companhia de Jesus. Santo Inácio se propõe criar um grupo religioso que atendesse as necessidades do tempo: é uma ordem religiosa sem as estruturas monásticas. Isso só foi possível graças ao desejo de um movimento de reforma da vida religiosa que vinha acontecendo dentro da Igreja. Neste mesmo caminho temos São Filipe Neri, São Francisco de Sales, São Vicente de Paulo que irão constituir religiosos para o trabalho ativo no mundo, não fechados em um convento como era costume até então, desde a reforma carolíngia.
A Revolução Francesa e o período iluminista tentaram sufocar a vida religiosa, classificando-os até mesmo como não úteis para a vida pública. Demonstrando assim todo o seu racionalismo e pragmatismo, não sendo capazes de perceber o valor espiritual efetivo na vida das pessoas. Mas o Espírito Santo age sempre e suscitou numerosas Congregações, assim chamadas, porque não faziam os votos solenes perpétuos, que eram os únicos reconhecidos pelo direito. Estas congregações faziam somente os votos simples e muitas vezes não levavam nem mesmo o hábito religioso, proibido pelas leis laicistas. Como exemplo pode-se citar os salesianos, as Filhas do Coração de Maria, os claretianos, dentre outros.
O que podemos perceber é que, tal como uma árvore com vários ramos, a vida religiosa na igreja vai surgindo a partir da necessidade dos tempos e buscando responder aos apelos que o evangelho lhe faz. Ao longo deste artigo, podemos constatar que saímos de uma vida partilhada no início da Igreja, depois vivemos um tempo de institucionalização ligada mais à vida de clausura e, quando os tempos exigiram movimentos de reforma, a vida religiosa consagrada procurou conformar o coração aos apelos do Evangelho, tornando-se resposta à realidade presente no momento. Em nosso tempo, podemos dizer que a Igreja e a vida religiosa estão conscientes que o verdadeiro caminho é abrir-se ao Espírito Santo e deixar que Ele fale aos corações e, como com Francisco de Assis, fazer-nos instrumentos de Seu amor.
Bibliografia
CATECHISMO DELLA CHIESA CATTOLICA. Casale Monferrato: Edizione Piemme, 1994.
MARTINA, Giacomo. História da Igreja Católica, de Lutero a nossos dias: A era do Liberalismo. São Paulo: Loyola, 2005.
VEILLEUX, o.c.s.o. Evoluzione della vita religiosa nel suo contesto storico-spirituale. Disponível em: http://www.citeaux.net/wri-av/evoluzione.htm. Acesso em 17 de agosto de 2022.