Artigo de Pe. Adão Carlos Pereira da Fonseca
“Tudo aquilo que na experiência religiosa humana tente apresentar Deus como um peso que torne insuportável a existência humana é falso, é apenas uma «projeção de Deus, não sua realidade».”
A experiência de muitas pessoas com a religião é marcada pelo medo, pela sensação de que existe um ser que vigia e pune o homem por qualquer deslize seu. Essa experiência se parece com aquela de Adão no Paraíso logo após cometer seu primeiro pecado: «Ouvi teus passos no jardim: tive medo […]» (Gn 3,10). E também com aquela de São Pedro logo após a pesca milagrosa: «Senhor, afasta-te de mim porque sou um pecador» (Lc 5,8). Infelizmente, Deus parece para muitos com um pai violento, vingativo, que deve ser temido (não no sentido de respeitado, mas como alguém amedrontador) muito mais do que amado.
A imagem do divino que grande parte dos ateus possuem, e que os leva a negar Deus, é aquela em que ele aparece como o olhar limitador de todas as possiblidades do homem. Nessa concepção, a sua existência seria a negação do homem, pois este seria limitado por um ser que o criaria arbitrariamente e mesmo assim exerceria sobre ele o direito de punição.
O medo que muitos religiosos impuseram às pessoas (com o intuito de controlar as suas escolhas ou mesmo de ajuda-las a ser “boas”) pode acabar criando uma mentalidade em que parece libertador não acreditar mais em Deus e nem em uma vida que ultrapasse essa. Por que isso acontece? Porque a imagem de Deus como alguém cruel, que cria o homem para cumprir determinadas leis e que o castiga simplesmente pela transgressão daquelas mais insignificantes parece contradizer aquilo que o homem entende como bondade. Para muitos, a experiência religiosa acabou sendo vista como um fardo pesado que dá mais medo do que esperança, que causa o desespero e o desequilíbrio de uma vida deprimida.
No início do livro “Assim Falava Zaratustra”, o filósofo ateu Nietzsche conta a estória de um dançarino que fazia a sua performance sobre uma corda colocada entre duas torres. Esse dançarino cai após ser derrubado por um outro que estava vestido como um palhaço. Antes de morrer, o dançarino retoma a consciência e diz a Zaratustra: «eu sabia há muito tempo que o diabo me faria tropeçar. Agora ele me arrastou para o inferno. Queres impedi-lo?» (NIETZSCHE, 2021, p. 32). Para tranquilizá-lo Zaratustra lhe diz: «Pela minha honra, meu amigo […], nada disso que tu falas existe: não há demônio nem inferno. Tua alma estará morta ainda mais cedo do que o teu corpo; portanto, nada temas» (Ibidem). As últimas palavras do dançarino, com um olhar de desconfiança, são: «Se falas a verdade […], nada perco quando perco a minha vida» (Ibidem).
Essa estória mostra aquilo que está na mentalidade de muitas pessoas que negam a existência de Deus e de uma vida que vá além desta. Muitos pensam: se existe um ser divino que castiga e condena ao inferno por qualquer coisa, é melhor que nem ele nem a vida após a morte existam. A base e o efeito de uma religião baseada no medo é o ressentimento. É o ressentimento contra a vida que leva os amedrontadores a alimentar o medo nas pessoas. É a incapacidade de reconciliar-se com o outro que transforma a experiência religiosa da humanidade em calúnia da vida. Dentro da experiência religiosa marcada pelo medo, os seus adeptos continuam a alimentar o seu ressentimento contra Deus, a quem veem como alguém terrível, amedrontador, e contra os outros, isto é, aqueles que estão fora do seu grupo e que tentam pensar de uma outra maneira. A religião ressentida é dualista, é marcada pela visão de que não há apenas uma polaridade, a existência de dois lados (ou mais), mas a total contraposição excludente entre dois lados: o bem e o mal, nós (os puros, perfeitos) e eles (os maus, os pecadores).
A fé cristã católica, vivida autenticamente, é uma crítica aberta a todo tipo de religião ressentida que tente amedrontar o homem. Ela critica essa perversão da experiência religiosa através da revelação da verdadeira face de Deus. Para o cristão, Jesus é a revelação concreta de Deus na história: «Quem me viu, viu o Pai» (Jo 14,9).
Jesus mostra que «Deus não é capaz de nos castigar e deixar de nos querer apesar de nossos pecados» (QUEIRUGA, 1999, p. 66), que, apesar da humanidade ser sempre tentada a pensar que o divino é algo tremendo, aterrorizante, «a lógica de Deus é outra: sua grandeza manifesta-se no amor e no perdão; a santidade, na proximidade salvadora» (Ibidem). Tudo aquilo que na experiência religiosa humana tente apresentar Deus como um peso que torne insuportável a existência humana é falso, é apenas uma «projeção de Deus, não sua realidade» (Ibidem).
Onde é possível perceber na Sagrada Escritura que Deus é assim e não da forma que a humanidade costuma pensar? Em várias passagens, mas de modo especial, na seguinte: «No amor não existe medo; pelo contrário, o amor perfeito lança fora o medo, pois o medo supõe castigo. Por conseguinte, quem sente medo ainda não está realizado no amor. Quanto a nós, amemos, porque ele nos amou primeiro» (1Jo 4,18-19). Nesse trecho está claro que não é possível amar perfeitamente e continuar a ter medo, que não há como amadurecer na relação com Deus pensando em castigo. Deus ama sempre, a todos, em qualquer circunstância.
Quando se vai descobrindo deveras o rosto verdadeiro do Senhor, surge esse lado obscuro como sua deformação pelos fantasmas humanos; como o negro e fantasmagórico, que deve ser eliminado à medida que a experiência religiosa avança em profundidade e pureza. Nós podemos ver ambíguo a Deus: bom por um lado e ameaçador por outro, clemente e castigador, fascinante e pavoroso; mas ele é unívoco: “Sim sem possibilidade de não” (cf. 2Cor 1,17-19), amor sem castigo, perdão sem limites nem condições».
(QUEIRUGA, 1999, p. 67)
A prova de que a visão aterrorizante de Deus está arraigada no coração do homem é a reação que as afirmações acima geralmente despertam em quem as lê ou ouve. Assim como o dançarino da estória contada por Nietzsche, o olhar de muitos é de desconfiança. Parece ser bom demais para ser verdade e ao mesmo tempo parece ser mais desafiador ainda do que imaginar o divino como alguém que nos vigia e limita. Essa situação mostra o quanto não é fácil assumir verdadeiramente uma visão de mundo cristã, isto é, baseada realmente naquilo que Jesus nos ensinou, na boa nova que ele nos trouxe.
A atitude necessária para a superação dessa desconfiança é a retomada da fé cristã como confiança em Deus. É necessário superar o medo, pois ele não combina com a atitude misericordiosa divina em relação a nós. Como o próprio Jesus incansavelmente disse: «Não tenham medo» (Mt 10,26). Para crescer na experiência da fé verdadeira, será sempre necessário acolher humildemente o amor divino, pois é ele quem nos faz conhecê-lo realmente. Eis um dos pontos fundamentais da revelação de Deus em Jesus Cristo: o amor é o único verdadeiro remédio contra o medo.
Não há mais necessidade de que o homem se esconda ao ouvir os passos de Deus no jardim (cf. Gn 3,10), pois Ele não é um intruso ou um juiz implacável, mas aquele que amou tanto o mundo que deu o seu Filho unigênito para salvar a sua criação (cf. Jo 3,16). O risco real de que o homem se perca não pode ser atribuído a Deus, mas à recusa que ele pode fazer do amor gratuito divino. Deus ama tanto o homem que é capaz de aceitar até mesmo a rejeição dele. Cada cristão é convidado a anunciar todos os dias da sua vida o Deus que continuamente insiste em dizer: «Não tenha medo, pois eu estou com você. Não precisa olhar com desconfiança, pois eu sou o seu Deus. Eu fortaleço você, eu o ajudo e sustento com minha mão vitoriosa» (Is 41,10).
Referências Bibliográficas
BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 2005.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra. Tradução de Erika Patrícia Moreira, João Pedro Nodari. Brasil: Pé da Letra, 2021.
QUEIRUGA, Andrés Torres. Recuperar a Criação: Por uma religião humanizadora. Tradução de João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1999.