Artigo do Cônego Manuel Quitério de Azevedo
“Ide pelo o mundo e anunciai o Evangelho” (Mc 16,15)
A urgência da atividade missionária deriva da radical novidade de vida, trazida por Cristo e vivida pelos seus discípulos. Esta nova vida é dom de Deus, e ao homem, é-lhe pedido que a acolha e desenvolva, se quiser realizar integralmente sua vocação, conformando-se a Cristo[1]. A fé exige a livre adesão do homem, mas tem de ser proposta, já que “multidões têm o direito de conhecer as riquezas do mistério de Cristo, nas quais toda a humanidade – assim acreditamos nós – pode encontrar, numa plenitude inimaginável, tudo aquilo que procura, às apalpadelas, a respeito de Deus, do homem, do seu destino, da vida e da morte, da verdade (…). É por isso que a Igreja conserva bem vivo o seu espírito missionário e que ele se identifique com o momento histórico que lhe foi dado viver[2]. O Catecismo da Igreja Católica quando fala de missão, abre-nos a mente que quando Jesus é ressuscitado dos mortos para a glória do Pai (Rm 6,4), dá imediatamente o Espírito Santo “soprando’ sobre os discípulos. A partir dessa hora, Cristo e o Espirito Santo são a verdade da missão da Igreja. Endossa essas palavras o Evangelho de João quando diz: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio” (Jo 20,21, CIC 730). O Senhor quer capitular toda a sua história de salvação em favor dos homens (CIC 430). A alegria de Deus é que todos se salvem. Por isso, toda a vida de Cristo exprime sua missão, ou seja, “servir e dar a vida em resgate de muitos” (CIC 608). Queremos ser uma Igreja em saída, ir às periferias humanas (EG 46), como nos convida o Papa Francisco. Ser uma Igreja em caminho, atravessando a história, aproximando-se de cada pessoa. Jesus se comunicava com gestos, toques, olhares e sentimentos. Suas palavras tinham a vida do Eterno (Jo 6, 68)[3].
Conhecer Jesus Cristo pela fé é nossa alegria; segui-lo é uma graça, e transmitir este tesouro aos demais é uma tarefa que o Senhor nos confiou ao nos chamar e nos escolher (DAp n.º 18). Ser missionário, hoje, supõe vivenciar a humildade do carpinteiro (Mt 13,55) a se decidir a cumprir a vontade de Deus[4]. Isso nos mostra que a Palavra de Deus, aparece constantemente em um dinamismo de “saída” Abraão (Gn 12, 1-3), Moisés (Ex 3, 10), Jeremias (Jr 1,7): “ Irás aonde Eu te enviar”[5]. O Papa Francisco testemunha: “A credibilidade do anúncio cristão seria muito maior, se os cristãos superassem as suas divisões e a Igreja realizasse “a plenitude da catolicidade que lhe é própria naqueles filhos que, embora incorporados pelo Batismo, estão separados da sua plena comunhão”[6]. É desse modo que o Papa sente afeto e carinho pelos que trabalham na Igreja. “Sei dos desafios que todos enfrentam”, diz o Papa. “Vejo o testemunho, que muitas vezes não está longe do Cristo Crucificado”[7]. É assim que a Igreja é servidora do Reino. O presépio e o sepulcro estão vazios; a porta do cenáculo está aberta; a genealogia, interrompida pelo Espírito. A Igreja saíu e foi ser instrumento e sinal.
A missão supõe “testemunho de proximidade que entranha aproximação afetuosa, escuta, humildade, solidariedade, compaixão, diálogo, reconciliação, compromisso com a justiça social e capacidade de compartilhar, como Jesus o fez”[8]. A paróquia, casa dos cristãos, onde por sua vez nos oferece a palavra, o pão e a caridade é o lugar por excelência do [domus ecclesiae][9], lugar oficial onde edificamos nossa vida missionária é célula da diocese[10] e onde visualizamos a Igreja universal[11]. Ela nos oferece o impulso missionário[12]. Desta forma a paróquia é anterior ao discurso e a qualquer atividade, que já por sua vez evangeliza[13]. A fé desvenda-nos o caminho e acompanha os nossos passos na história. Esta palavra foi dirigida a Abraão se transformou em chamado e a abrir-se a uma vida nova[14]. Seguindo esta lógica da fé, hoje, se centra em Cristo[15]. Por isso, é impossível crer sozinho. Somos chamados a nos abrir[16]. A fé é um organismo vivo, como muito bem evidenciou o Beato John Henry Newman[17]. É por isso que a missão se alarga de cada vez mais. Ela é programática[18] e paradigmática[19]. Eis, pois, a necessidade de uma conversão constante, fugir das coisas caducas e evidenciar a mudança das estruturas[20].
Nosso século está correndo como louco atrás da eficiência, do lucro e da produtividade, confundindo valores, prioridades e necessidades vitais e exilando a própria ética das discussões sobre o viver. O preço que pagamos é extremamente elevado, na medida em que identificamos uma hipertrofia[21] de valores materiais (que chegam a se constituir em anti-valores) e uma atrofia[22] de valores espirituais (no seu sentido religioso e no que tange à questão da própria qualidade de vida[23]. Afundamo-nos no fosso de um grave desequilíbrio vital. Não será dizendo coisas esotéricas ou dissertando em clima de assepsia[24] acadêmica que vamos reverter este quadro. No Brasil é bem visível um desequilíbrio na igualdade dos bens. O capitalismo selvagem está desbravando o seu campo de ação e ao mesmo tempo abre, sem escrúpulo, um abismo profundo entre a riqueza e o desperdício de poucos que contrasta com a miséria e a fome de muitos[25]. O contraste de um Brasil colocado entre as dez grandes potências mundiais, e os indicadores sociais que nos enumeram entre as últimas nações na distribuição de riquezas[26], apontam para o escândalo moral, solapador[27] de toda ética, aqui vivido. Diante deste quadro, vemos como é fácil eclodir uma crise de legitimação das instituições; também é visível a efervescência de um conformismo, a indiferença e acomodação de um sem número de situações aumentando a perda do senso crítico e como consequência a responsabilidade moral. Hoje o que mais se vê é o cidadão buscar os seus direitos e o aumento dos números telefônicos para as denúncias. Porque que a ética precisa se esconder por detrás de um número anônimo. O que se vê com propriedade é o sem número de artífices para contornar a situação de qualquer jeito[28]. Como evangelizar este mundo? Fiel à ordem do divino Mestre, a Igreja, envia operários qualificados e através do trabalho missionário, ela mesma se constitui, consolida e constrói como comunidade de fé, esperança e amor, fazendo do seu lema, o Batismo como fonte de todas as vocações. Para tal precisamos valorizar e acolher com propriedade a palavra alteridade, que nos estudos de L. Feuerbach se abre realmente a um sentido mais profícuo quando se expressa dimensionando-se para o diálogo entre um “eu” e um “tu” alicerçando a possibilidade de uma “verdadeira dialética”[29], onde reside neste diálogo o que de mais sensível o homem pode encontrar com o outro[30]. Sejamos todos discípulos e missionários de Jesus Cristo. “Vem e segue-me (Mt 19,21).
[1] João Paulo II, Redemptoris Missio – sobre a validade permanente do mandato missionário, Vozes, Petrópolis, 1991, n.º 7 (pág. 17).
[2] Ibid., n.º 9; Paulo VI, Exortação Apostólica Evangelli nuntiandi (8/XII/1975, 53, AAS 68 (1976), 42.
[3] Estudos da CNBB, documento 114, pág17-18.
[4] Carta Apostólica, Patris Corde, pág 7.
[5] Exortação Apostólica Evangelli Gaudium, pag 19.
[6] Ibd.,n.º 244, pág 191.
[7] Ibd., n.º 76, pág 66.
[8] DAp, n. 363.
[9] Documento 100, CNBB, n. 177. A 184
[10] AA (Apostolicam Actuositatem), n.10, in documento 100 da CNBB.
[11] LG, n.28
[12] Documento 100, CNBB, n.182.
[13] Documento 100, CNBB, n. 185
[14] CARTA ENCÍCLICA, Lumen Fidei, n.º 8 e 9.
[15] Idem, 20
[16] Idem, 39
[17] Idem, 48.
[18] Quem se programa.
[19] Termo com o qual Thomas Kuhn (v. kuhniano) designou as realizações científicas (p. ex., a dinâmica de Newton ou a química de Lavoisier) que geram modelos que, por período mais ou menos longo e de modo mais ou menos explícito, orientam o desenvolvimento posterior das pesquisas exclusivamente na busca da solução para os problemas por elas suscitados.
[20] Discurso do Papa Francisco aos dirigentes do CELAM, 28/07/2013.
[21] Aumento de tamanho de órgão, ou de parte de órgão. Desenvolvimento ou aumento excessivo.
[22] Insuficiência de nutrição, que se exterioriza por desgaste ou diminuição de tamanho de célula, tecido, órgão ou estrutura do corpo.
[23] R. De Morais, “Ética e vida social contemporânea”, Tempo e Presença, n.º 263, maio/junho de 1992, 5.
[24] Conjunto das medidas adotadas para evitar a chegada de germes a local que não os contenha.
[25] H. Jaduaribe et alii, Reforma ou caos, Rio de Janeiro, 1989; R. De Juan Y Penalosa, “Brasil, uma incógnita por desvendar”, Síntese Nova Fase, 49 (1990), 101-108; P. G. F. Vizentini (org), A grande crise – A nova (des) ordem internacional dos anos 80 aos 90, Petrópolis, ed., Vozes, 1992.
[26] Nilo Agostini, As contingências da “Nova República”, em Nova Evangelização e Opção Comunitária – Conscientização e Movimentos Populares, Petrópolis, ed., Vozes, 1990, 139 s.
[27] Cova encoberta ou tapada de modo que não se veja.
[28] Nilo Agostini, Ética e Evangelização, op., cit., 132.
[29] Arte do diálogo ou da discussão, quer num sentido laudativo, como força de argumentação, quer num sentido pejorativo, como excessivo emprego de sutilezas. Filos. Desenvolvimento de processos gerados por oposições que provisoriamente se resolvem em unidades. Hist. Filos. Conforme Hegel (v. hegelianismo), a natureza verdadeira e única da razão e do ser que são identificados um ao outro e se definem segundo o processo racional que procede pela união incessante de contrários — tese e antítese — numa categoria superior, a síntese. Hist. Filos. Segundo Marx (v. marxismo), o processo de descrição exata do real. Nilo Agostini, op.cit., 36.
[30] Ética e evangelização, op., cit., pág. 36 – 38.