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O chamado familiar à fecundidade

Texto do Diác. Josué Augusto Teodoro dos Santos

É grande o sofrimento dos casais que descobrem que são estéreis”. É a primeira observação que faz o Catecismo da Igreja Católica (CIC, n.2374) após resgatar a noção das famílias numerosas como sinal da bênção divina e da generosidade dos pais. A abertura à vida é uma condição sine qua non para o matrimônio sacramental, mas os filhos, propriamente, são um dom: dádiva, presente, algo que se obtém de forma gratuita, sem merecimento ou direito.

Às vezes, alguns casais encontram-se numa situação conflituosa e desafiadora. Uniram-se em matrimônio “mais do que abertos à vida, mas fortemente desejosos de filhos” – e é lícito e justo aos casais desejarem filhos! Infelizmente, descobrem-se biologicamente estéreis e frustram-se em seu forte, lícito e justo desejo de filhos. A Igreja entende que é grande este drama, medita sobre ele já com alguns relatos bíblicos, acolhe aos casais de hoje junto de si para consolá-los bem como apoia que pesquisas justas em vista de resolver o problema da infertilidade sejam realizadas (cf. CIC, 2374-2375).

É preciso, porém, alargar o horizonte quanto ao chamado (vocação) da família à fecundidade. Não é ignorar o incentivo de que se cultivem famílias numerosas, mas aprofundar o entendimento de que “[…] a tarefa fundamental da família é o serviço à vida” (Exortação Apostólica Familiaris consortio, FC, 28), pois, às vezes, algumas famílias são assoladas pela infertilidade biológica.

Há na Revelação bíblica um itinerário de crescimento e alargamento na compreensão da fecundidade, que deixa a valorização exclusiva da fecundidade carnal para mostrar que a fecundidade espiritual é que é fruto da fé. No início do Antigo Testamento, a esterilidade é um mau como o sofrimento e a morte, agindo-se, inclusive, de forma imoral para fugir dele (p.ex.: Sara em Gn 16,2; 30,3-6; Lia em Gn 30,9-13; filhas de Ló em Gn 19,30-38). A experiência do exílio em Babilônia gerou um colapso da valorização exclusiva da fecundidade carnal, de modo que, por exemplo, o eunuco que era impedido de oferecer sacrifícios (Lv 21,20), tem a promessa de receber um nome eterno por guardar uma vida reta, conforme as vontades de Deus (Is 56,3-5). Nos sapienciais, observa-se semelhante movimento, “porque é melhor um só do que mil, e morrer sem filho do que ter filhos ímpios” (Eclo 16,1-4). A fé encaminha para uma fecundidade espiritual autêntica: é feliz a “estéril imaculada” e o eunuco que não cometeu crimes e o mal, pois “é melhor possuir a virtude, mesmo sem filhos; a imortalidade se perpetua na sua memória: Deus e os homens a conhecem” (cf. Sb 3,13-14; 4,1) (LÉON-DUFOUR, 1978b, p.1249-1250).

A partir de tais mudanças, depreende-se que é esperado dos crentes não apenas o fruto da geração terrestre-carnal, mas também – e sobretudo – o fruto das boas obras, da virtude, que subsistem imortais.

Com Jesus Cristo, na plenitude da Revelação, há no Novo Testamento até uma espécie de incentivo a uma “esterilidade voluntária”. Não se trata de contracepção, interceptação, contragestação, aborto ou a prática da esterilização-mutilação, mas de “fazer-se eunuco em vista do Reino” (cf. Mt 19,12). Ou seja, pela pureza da fé, trabalhar para gerar vida de forma qualitativa na vida da comunidade, assumindo uma fecundidade espiritual.

A magnanimidade e complexidade deste conceito sempre foi contemplada pelo Magistério. Por isso, sustenta-se que embora ordenado à geração e educação da prole, o matrimônio não foi instituído só em ordem a este fim (cf. Constituição Pastoral Gaudium et spes, GS, 50; Exortação apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia, AL, 178): quando a procriação não é possível, a instituição matrimonial não perde seu valor (FC, 14). Torna-se, talvez, mais grave manifestar a fecundidade espiritual, uma vez que – mesmo sem filhos – se é uma família e “[…] a tarefa fundamental da família é o serviço à vida” (FC, 28). Ela é fruto e sinal do amor conjugal que “alarga e enriquece-se com todos aqueles frutos da vida moral, espiritual e sobrenatural” a serem doados, em última instância, à Igreja e ao mundo, mesmo quando não passa por uma prole (FC, 28).

Ou seja, ela está para além da geração biológica e inscreve-se, propriamente, no âmbito da capacidade de gerar vidas enriquecidas de qualidade, mais plenas de sentido e realizadas na sua dignidade. Este efeito é também regenerativo quando, atuando na vida do próprio casal, promove este enriquecimento pessoal neles mesmos, a despeito da infertilidade biológica. Ao abordar tal riqueza de sentido, o Papa Francisco (AL, 178-186) refere-se a ela como “fecundidade alargada”.

A maternidade e a paternidade podem se manifestar de outras formas. A primeira, relativamente evidente, é por meio da adoção. Essa representa uma generosidade grandiosa do casal, que age disponibilizando-se como uma família para quem não a tem, “tornam-se mediação do amor de Deus que diz: ‘Ainda que a tua mãe chegasse a esquecer-te, Eu nunca te esqueceria’ (cf. Is 49,15)” (AL, 179). As próprias legislações deveriam facilitar que isso acontecesse, sobretudo nos casos de filhos não desejados, uma alternativa ao abandono e ao aborto pela opção no acolhimento, amor e cuidado das crianças, que não devem apenas “ser postas no mundo” (cf. AL, 179-180).

A fecundidade do amor, porém, não se limita à procriação e à adoção. Toda a família é chamada a “deixar sua marca na sociedade” (cf. AL, 181) bem como na própria Igreja, enquanto leigos. Assim, pode representar uma forma especial para os casais que se surpreendem estéreis, uma forma rica para desenvolver a sua fecundidade. Não vivem uma vida isolada, mas abrem-se ao mundo, inserindo-se profundamente nele, para aí gerar a presença de Cristo, cujo odor adquiriram com sua iniciação cristã (cf. 2Cor 2,15). Torna-se uma família em busca de cuidar de outras situações de carência, de miséria, de ferida. “Não fica à espera, mas sai de si mesma à procura de solidariedade” (AL, 180), afinal, “um casal de esposos que experimenta a força do amor, sabe que este amor é chamado a sarar as feridas dos abandonados, estabelecer a cultura do encontro, lutar pela justiça” (AL, 183).

Diante de tudo isso, o chamado a uma fecundidade alargada é para todos, não só para os casais estéreis. “Fecundidade” apresenta um sentido muito mais amplo, porém, mais profundo. Não é o caso, portanto, da perseguição de uma fecundidade (carnal-procriadora) a todo custo, que professe um direito ao filho (cf. Instrução Donum Vitae, DVit, II, B, 8; MIRANDA, 2005). Isso não exclui o incentivo à generosidade na geração de filhos ou na opção por uma família numerosa, muito pelo contrário: faz descortinar o quão maior e nobre é o chamado das famílias no serviço à vida, que deve ser integral. Além disso, vale pontuar que todos são chamados a aliviar aqueles que passam pelo sofrimento da infertilidade biológica e que se deve encorajar as pesquisas para prevenção da infertilidade, bem como para seu tratamento adequado (cf. DVit, II, B, 8; Instrução Dignitas Personae, 13).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São Paulo: Loyola, 2000
CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Instrução Dignitas Personae: sobre algumas questões de bioética. 2.ed. Brasília: CNBB, 2008.
CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Instrução Donum Vitae: resposta a algumas questões atuais. 1987. Disponível em: https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19870222_respect-for-human-life_po.html. Acesso em: 14 jul. 2021.
FRANCISCO. Exortação apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia: sobre o amor na família. São Paulo: Paulus, 2016.
JOÃO PAULO II. Exortação Apostólica Familiaris consortio: sobre a função da família cristã no mundo de hoje. São Paulo: Paulinas, 1981.
LÉON-DUFOUR, Xavier. Fecondità. In: Dizionario di Teologia Biblica. 5.ed. Torino: Marietti, 1978a. p.374-378.
LÉON-DUFOUR, Xavier. Sterilità. In: Dizionario di Teologia Biblica. 5.ed. Torino: Marietti, 1978b. p.1248-1250.
MIRANDA, Gonzalo. Riproduzione assistita: criteri per un giudizio etico. Social News, v.2, n.5, p.31-38, 2005.
PAULO VI. Constituição Pastoral Gaudium et spes: sobre a Igreja no mundo actual. 1965. Disponível em: https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/ documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html. Acesso em: 10 out. 2021.

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